Uma crônica de Ernâni Motta
O CASAMENTO DA RAPOSA
Ernâni Motta
Depois do almoço, quando nos animávamos para as brincadeiras, aquela frase era repetida, como o velho carrilhão pendurado na parede, badalando as horas: - meninos, primeiro o dever de casa. Minha mãe era uma doçura, mas, nessas horas, sinceramente, aquela não era uma frase que me agradasse aos ouvidos, porém, não havia como fugir. Então, aos deveres.
Meio preguiçosamente, fazia o meu trabalho. Não raramente, entretanto, quando já estava próximo do fim, percebia que o vento assoprava com mais força, o que era o prenúncio de que a chuva viria a seguir. Apressava-me em fazer o dever de casa e antes que as primeiras gotas começassem a cair, eu estava com as tarefas terminadas.
Alguns minutos mais e começa o maior toró... O sol praticamente a pino e o maior aguaceiro caindo. Em Macapá daquela época, a gente dizia que era o casamento da raposa. Não demorava muito e as ruas estavam todas alagadas.
Aquilo era uma festa para a molecada, e lá íamos todos para o meio da rua... Naqueles tempos, podíamos fazer isso sem susto, pois, os aloprados ainda não existiam e o trânsito era tão insignificante, que posso dizer que nem existia. Corríamos de um lado para o outro, sem rumo nem direção, extravasando o estresse ou nem isso, simplesmente, aproveitando a água que caía do Céu.
Com todas as letras, aquilo era um delicioso Banho de Chuva. E qual moleque não gosta de um bom banho de chuva?
Após o corre-corre sem destino, íamos jogar o nosso futebol, com perdão da má palavra, com uma velha bola de borracha, mas, que fazia a nossa festa. O pedido de perdão pela má palavra é porque, pernas de pau que éramos, não posso dizer que aquilo era futebol. Lembro mais, houve um dia em que a bola furou, como não tínhamos outra, ficamos com aquela mesmo, por não sei quanto tempo.
O importante – é bom que se diga – são as lembranças daquelas tardes em que tínhamos os famosíssimos “casamentos de raposa”. Mas, saudosismos à parte, é muito bom lembrar da excitação que nos causavam aqueles banhos de chuva. Coisa que a cidade grande não permite à molecada desses novos tempos de games eletrônicos. Aliás, nem sei se em Macapá ainda ocorre o velho fenômeno do casamento da raposa.
Saudade, mesmo, tenho do dia em que, quando São Pedro abriu as torneiras e saímos correndo para o meio da rua, ela apareceu, com um vestido de chita florida e cores fortes, que ensopado, pela chuva, estava todo colado em seu corpo. Seus seios pequenos e divinamente desenhados estavam, praticamente, à mostra e apontados em minha direção, como um dedo em riste a me acusar, por meu olhar de cobiça. Confesso que tentei evitar, mas, desprotegidos de qualquer outra peça e o fino vestido colado neles, eram a mais doce das tentações, a que já fui submetido, na vida.
Seus cabelos pretos e longos estavam igualmente encharcados e corriam-lhe pelas costas e a franja alcançavam-lhe as grossas sobrancelhas. Aliás, franja, naqueles tempos, era chamada, em Macapá, de pastinha. Era a visão de uma índia doce, bonita e tentadora, mas, com um sorriso ainda pueril, ali, à minha frente.
Às vezes, fico pensando com os meus botões, será que a vi mesmo ou tudo não passou de um exercício da minha imaginação? Mas, até hoje é tão real, que me recuso em acreditar que, de fato, não a vi. Não, a minha imaginação não seria tão fértil e criativa a esse ponto. Seguramente, ela esteve à minha frente, naquele dia, que não importa qual...
Lembro que nos olhamos, com o olhar próprio de quem quer deixar de ser criança, mas que ainda não sabe o que é ser adulto. Um olhar impregnado de desejo, porém, receoso do desconhecido. Na verdade, meio com medo daquela coisa instintiva que nos fazia ferver o sangue.
Penso que aquela troca de olhares durou uma eternidade... Seria pedir demais que soubesse o tempo precisamente, mas, a luz dos seus olhos negros cingiram-me as entranhas, como de propósito para jamais esquecê-la.
A chuva fria, que nos banhava os corpos, não era capaz de desaquecer as nossas almas. Recordo que, passado algum tempo, num verdadeiro ato de bravura, segurei-lhe as mãos. Ela riu e me falou baixinho: “Ah! Meu Deus, se a minha mãe vê... Não sei o que será de mim”.
Então, me enchi de coragem, tal qual os mocinhos dos filmes que assistia no Cine João XXIII, e lhe disse: “Se sua mãe brigar, vou à sua casa e digo a ela que amo você”. Ela riu e replicou: “Ela põe você pra correr de lá”. Rimos juntos e ela, delicadamente, tirou suas mãos de entre as minhas.
A poeira do tempo encarregou-se de fazer com que nunca mais nos víssemos, porém, uma chuva em tarde ensolarada, não tem jeito, faz-me lembrar daquele banho de chuva.
(Bancário aposentado e jornalista, Ernâni Motta é amapaense morando há muitos anos no Rio de Janeiro. Mantem o blog ernanimotta.zip.net pelo qual nós amapaenses amigos dele matamos um pouco da saudade)
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