sexta-feira, 20 de junho de 2008

Chuvas e lembranças

Heraldo Costa

Estava outro dia em casa e minha atenção foi despertada pelo barulho da molecada na rua. Eles faziam aquela algazarra tomando banho de chuva, chutando bola, correndo pro abraço depois de um gol imaginário, numa trave de sonhos. Livres, felizes, distantes do mundo dos adultos que se tomarem um banho desses é resfriado na certa nos dias seguintes.

Estive conversando com os de mais idade, e pude ouvir relatos que nunca tinham visto o mês de junho começar com tanta chuva. Tanta chuva que há tantos anos assim não via.

Muita chuva mesmo que me recordo da expressão meiga de uma parteira tradicional, bem idosa, que deu uma certa entrevista. Essa parteira participava daqueles encontros promovidos pela Deputada Janete, quando primeira dama e ao ser perguntada se já fizera muitos partos, respondeu com aquele palavriado gostoso do pessoal do interior, que me fez lembrar minha avó: - Ih meu filho. Já 'fez' parto até por 'debá' de 'chôva' e.... 'chôva'.

A resposta faz a gente sentir que, em certas regiões do Estado, chove muito mais que na capital. É muita 'chôva'.

Essas chuvas me trazem muitas recordações. Algumas boas, outras nem tanto, algumas que trazem apreensão, outras felicidades.

Recordações que, inevitavelmente vêm à mente quando passamos por determinados lugares antes intrafegáveis, e que hoje nos vê, 'gabolas' passarmos a toda, sem dar bola. Por falar nisso, outro dia passei pela localidade do "Breu", município de Amapá, onde, há 20 anos, fiquei dois dias esperando pra 'atravessar' pro outro lado do igarapé que se formou bem no meio da BR 156.

Observo que atualmente tem caído a tal da 'chuva branca', que é aquela que minha avó dizia que chovia a noite toda, compassada, igual batida do coração, quando faz o barulhinho na 'biqueira'.

Nesses dias é gostoso estar numa casa de telhado, para poder dormir ao som dos pingos. Essas recordações, tal qual a chuva, vai inundando meu coração, bem devagarzinho, igual chuva fina, encharcando e tirando a sequidão.

É inevitável que, em dias de chuva, ao ver aquela cortina de água caindo dos telhados, as lembranças fluam com mais intensidade.

Estive lendo várias obras sobre essas lembranças, mas quero brindar a todos com o poema de Carmem Vervloet, que retrata com profundidade as lembranças trazidas pela chuva. Leiam e recordem.

Boas Chuvas.

Chuva de Lembranças

Como é bom ter olhos para ver o mundo!
O céu nublado olhado de um jeito profundo!
Escoando chuva miúda, límpida, fina...
Regando meu amado jardim, com água tão cristalina!
O verde relaxante das folhagens que vem e vão...
Contrastando com flores coloridas que gratuitamente se dão...
Flores e folhagens unidas num perfeito casamento,
Embalando sonhos lindos, trazendo a tona latente sentimento.

Volto ao tempo de infância...
E a chuva, as flores, o cheiro de terra molhada...
Trazem a saudade, o perfume, a fragrância...
Dos tempos felizes de criança,
Vividos na casa caiada...

Vejo-me a caçar borboletas...
O riso fácil, os pés descalços pisando a lama macia!
Ouço a voz de mamãe: "Menina sem juízo, vais ficar doente"!
E a voz de papai, que para ouvir novamente tudo daria!...
"Velha, deixe a menina, isto faz bem, ela está contente"!

E nas noites bordadas de chuva,
Papai, velhas histórias de família, a contar...
E eu agachada a seus pés, excitada,
Com os olhos qual um sol a brilhar...
Queria saber de tudo, queria eternizar o momento,
Para sentir da sua voz o calor...
Que no frio da minha terra me aquecia com amor.

E em cada gota de chuva que cai no meu jardim...
Lembranças de momentos vividos...
Brancos, imaculados como o jasmim.
Momentos de ternura que voaram ligeiros...
Como os pássaros que agora da chuva querem se abrigar...
Momentos de aconchego
Que só o calor de uma família feliz pôde dar!

Momentos que no tempo passaram...
Mas em mim eternamente ficaram...
Momentos do passado, mas que em mim estão presentes...
Momentos que me questionam,
Quando num futuro ameaçador penso estar ausente.
Tantos momentos felizes,
Incontáveis como as gotas de chuva
Que agora o céu escoa...
Momentos cristalizados no coração da menina
Que continua correndo atrás da borboleta esperança que voa...