quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

Boneca para Maria Rosa

Alcy Araújo Cavalcante
(1924-1989)

Papai Noel meteu a mão na algibeira. Bem, melhor dizer bolso, da surrada calça de sarja azul. Quando a mão voltou trazia duas notas – uma de cem e outra de vinte, amarrotadas. E, mais, uma moeda de alumínio de vinte centavos. Papai Noel consultou o dinheiro. No botequim mais próximo, o rádio, em ritmo de samba, contava a história do homem do morro que amava uma guerreira das ruas pavimentadas. Tornou a conferir o dinheiro. Guardou no bolso da blusa os cento e vinte cruzeiros e no bolsinho direito da calça os vinte centavos de alumínio. Parou olhando a passagem de um jeep. Depois andou em direção ao botequim e ao rádio. Tirou o velho chapéu de massa marrom. Pediu um maço de cigarros vagabundos e um café, que foi servido num copo amarelado, que antes fora branco. Enquanto esperava o café bateu no balcão – de todos os lados – o maço de cigarros. Tomou o café, pagou a despesa e ficou com vinte cruzeiros e vinte centavos. Fósforo não comprou, que Papai Noel conhece a solidariedade dos fumantes – o fogo faz favor.
Papai Noel deixou o boteco. Acendeu o cigarro no primeiro transeunte e explicou, mentindo: “cabocla besta, só porque eu não tinha trocado não me vendeu uma caixa de fósforos. É sempre assim. Não entro mais aí”. Mostrou, com o dedo sujo e nicotinado, o boteco.
Papai Noel dirigiu-se, na tarde quente da tropical cidade, para o centro comercial naquele 24 de dezembro. Nas vitrines miniaturas de papais nóeis mecânicos, brinquedos, objetos para presentes, bolas de vidro colorido, toda uma gama de cores anunciando o anual dia maior da cristandade. Nas ruas, o movimento, homens e mulheres apressados carregados de embrulhos. Na porta de um armazém um Papai Noel disfarçado, de botas, barbas de algodão e roupa vermelha, sacudia azucrinantemente uma sineta. Mais adiante outro estacionava com um enorme saco às costas frente a uma loja de brinquedos, distribuindo papéis impressos e coloridos.
Papai Noel entrou no armazém. Caixeiros atarefados – gente se comprimindo, mulheres falando mais alto que os homens, o choro enfezado de um menino. Caixas de nozes, avelãs, passas soltas, todo um sortimento de artigos de Natal. Ele, com habilidade, desviou para os bolsos algumas nozes, avelãs e passas. Saiu. Numa rua transversal, um bar sórdido, cheio de boêmios que aproveitavam o motivo do nascimento de Cristo. Conseguiu tomar duas cachaças e aproveitando o bafafá de bêbedos deu o fora sem pagar a despesa.
Numa vitrine, a boneca dormia. Boneca desejada por Maria Rosa, no dia em que fora levada ao posto médico. Papai Noel se emocionou e enxugou no lenço encardido uma lágrima furtiva. Durante um momento ali permaneceu, até que a boneca foi tirada da exposição e entregue a uma senhora jovem e bem nutrida.
Seguiu a senhora até um bairro próximo, habitado por famílias de meias posses. Com isso piorou a sua situação financeira, gastando dez com passagem de ônibus.
Ao cair da noite encontrou um conhecido de outros natais, que se embebedava. A velha solidariedade dos boêmios permitiu que Papai Noel esquentasse o peito com vários copázios de bebida altamente alcoolada, doses de salame e rodelas de pão.
A casa onde entrara a boneca vivia os momentos felizes das famílias cristãs. No quintal, Papai Noel ocultou-se por trás do galinheiro. Esperou que o fim da ceia e o sono pusessem o ponto final do silêncio no apagar das lâmpadas elétricas.
Vagarosamente, silenciosamente, Papai Noel – com sua técnica milenar penetrou na casa pelos fundos. No quarto das crianças ele viu, sob a luz que a vidraça da janela coava, um caminhão de carga, um imenso e vermelho carro de bombeiros e uma bola colorida. Viu também um branco fogão de matéria plástica, uma liliputiana bateria de cozinha, um berço que era uma beleza e a boneca de Maria Rosa. Feliz e trêmulo, ele carregou a boneca.
Na manhã de Natal havia risos, alegria e luz pelas calçadas. No Cemitério Municipal, Quadra Infantil-A, Sepultura n. 4.222, dormia, cabelos loiros ao sol, a boneca de Maria Rosa.