quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Poetas do Amapá

SAHARESCO
Alcy Araújo Cavalcante (1924-1989)

Primeiramente apunhalei um infiel, desses cães mentirosos a quem chamam legionários e que, dizem, trocam de nome quando entram para a Legião. Isto aconteceu logo após às orações da manhã.
Depois comi tâmaras e tomei água fresca no óasis onde estava acampada a caravana de Bem Yusuf.
Então parti, eu e minha camela Yasmim, ao encontro do fazedor de tendas. Um bom sujeito, o Omar.
Tratamos de negócios e conversamos muito após as orações da tarde, à entrada de sua tenda, sob as estrelas. Omar falou que não temia a justiça de Deus porque sempre fora um homem sincero e mostrou-se um grande apreciador de vinho.
Segundo sua opinião, se os que gostam de vinho são danados no inferno, é possível que o dito esteja lotado de seus apreciadores.
Falou, também, que a vida pouco lhe interessava, dizendo que havia sido um bem que lhe deram sem o consultar e que restituiria com indiferença, a qualquer momento.
Por fim, caímos em silêncio, bêbedos de vinho, poesia e estrelas.
Ao despedir-me, ganhei um fraco de óleo aromático e um punham com cabo de marfim. parti. Eu, a minha camela, o frasco, o punhal e a poesia de Omar, com destino à minha tribo itinerante.
Antes, ia esquecendo, encontrei o Simum. Vento dos infernos, quente como o diabo. Yasmim deitou-se e eu fiquei escondido atrás dela até passar a tempestade. Ao encontrar minha tribo, a Bem Amada tinha sido vendida a Bem Amed, o mercador.
Só restava comer tâmaras ou beber vinho. Bebi vinho. Allah perdoará a minha bebedeira.
Foi quando chegou Sheerazade, contando histórias para que eu esquecesse a Bem Amada. Ninguém como ela para contar histórias. Acontece que o papai aqui, beduíno velho, calejado por muitas andanças, nào foi na conversa e saiu à procura dos seus olhos feitos de noite, de óasis em óasis, revistando caravanas, orando em todas as mesquitas, comparecendo a todas as feiras de escravos, violando haréns. E nada. Viajei para o Norte e os esquimós não souberam a minha linguagem; desci para a Antártida e os pinguins não me compreenderam; segui a rota de Marco Pólo para o Oriente e a de Colombo para o Ocidente; dobrei dezoito vezes o Cabo da Boa Esperança; subi de Convair até encontrar a habitação do Anjo e desci com o Capitão Nemo até o fundo dos sete mares.
Finalmente, acordei cristão, na Latitude Zero, com um amargo danado de cachaça na boca ressequida.
(Extraído da Antologia Modernos Poetas do Amapá - Macapá-AP, 1960)