Tá no jornal O Estado de S.Paulo:
Na solidão do poder, Sarney vive seu outono do patriarca
João Bosco Rabello e Christiane Samarco, BRASÍLIA
Com passos curtos e seguros, vestindo um sobretudo de lã preta, José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, 79 anos, entrou na noite de segunda-feira na residência oficial do presidente da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP). Na área externa da casa, em volta do presidente Lula, grupos de políticos e jornalistas conversavam animadamente e esperavam o jantar em homenagem aos participantes da 4ª Conferência Legislativa de Liberdade de Imprensa. Feitos os cumprimentos protocolares, um José silencioso, que não denunciava a biografia com mais de meio século de poder político, fugiu do burburinho e ficou parado no primeiro dos três degraus que separam o salão da casa do jardim virado para o Lago Paranoá.
Apartado da descontração em torno de Lula e recolhido do frio das noites candangas de junho, o ex-presidente da República, ex-governador de Estado, presidente do Congresso, ex-deputado federal e senador José Sarney ouviu de um jornalista a pergunta: “Presidente, o Senado já está mais ameno?” E Sarney, expondo os indícios do fardo em que se transformou o cargo, respondeu: “Meu filho, aquilo não ameniza nunca.”
Era o início da semana em que, depois de todos os escândalos - da hora extra sem limites à profusão de diretores -, a reportagem do Estado revelaria o caso dos atos secretos que fizeram da direção-geral do Senado um guichê de distribuição de empregos e salários entre amigos, na última década e meia.
A noite na casa de Temer expôs um Sarney que fez história, mergulhou no vício solitário do poder e vive o autêntico outono do patriarca. A ideia de disputar pela segunda vez a presidência do Poder Legislativo já foi um arroubo extemporâneo. Como revelam alguns dos amigos mais íntimos, a real motivação para essa disputa foi a conquista de um cargo político poderoso para enfrentar a investigação que a Polícia Federal fazia nas empresas da família, a Operação Boi Barrica.
A PF chegou a pedir ao juiz da 1ª Vara Criminal de São Luís a prisão preventiva de um filho de Sarney, Fernando, e da nora, Teresa Murad Sarney. O presidente do Congresso temia que a espetacularização que caracterizava as operações da PF naqueles dias acabasse por levar até a prisão da neta, filha de Fernando e Teresa. Em conversa com amigos, chegou a desabafar: “Para protegê-la mandei que só dormisse com a avó” - a família temia uma operação de busca, apreensão e prisão na residência de São Luís.
OCASO
Quem acompanha há mais tempo - e de perto - a trajetória do senador identifica dois atores políticos distintos: o “Sarney do Maranhão”, que virou senador pelo Amapá, e o “Sarney nacional”. O do Amapá, que garantiu a manutenção da sua vaga no Congresso, passa despercebido. O do Maranhão ganhou oxigênio político com a volta da filha Roseana ao governo estadual. Mas o Sarney “nacional” hoje é politicamente mais frágil que o de novembro do ano passado, antes da disputa renhida com o PT pelo comando do Congresso. A briga com o senador Tião Viana (PT-AC) estendeu-se após a eleição e deixou sequelas que não amenizam.
Na avaliação de um dirigente do PT, Sarney continua “muito forte” com o lulismo, mas desgastou-se com o petismo. O PT absorve no limite estritamente necessário sua aliança com o Planalto, mas sempre que pode deixa clara a incompatibilidade dos DNAs políticos. A soma desses fatores expõe um Sarney frágil e compõe a fotografia de uma liderança histórica em declínio, em que pese a reconquista do poder regional, por meio da filha, Roseana, que o TSE devolveu ao governo do Maranhão.
A volta da senadora ao Palácio dos Leões dá gás ao chamado grupo sarneysista, que vinha perdendo espaço no Estado. Com a retomada da máquina do governo, a tendência é recuperar a base perdida para Jackson Lago (PDT), cassado por abuso de poder econômico. Prova disso é que, quando assumiu o governo em 17 de abril, Roseana e seu grupo eram minoria na Assembleia. O placar em favor de Lago e seus aliados era de 42 a 16. Menos de dois meses depois, Roseana já contabiliza o apoio de 30 deputados estaduais, mas a repercussão disso na liderança nacional de Sarney é praticamente nula.
O ocaso da liderança do patriarca Sarney se dá por fatores múltiplos, em que o cronológico é o de menor relevância. Aos 79 anos de idade, com boa saúde e aparência, Sarney se vê distante da geração dos políticos locais. Lá se vão 30 anos desde a última vez em que disputou uma eleição no Maranhão, onde a maioria dos atuais prefeitos não o conhece pessoalmente. Só um projeto nacional em torno de Roseana teria poder de reverter a curva descendente em que ele se encontra, como ocorreu nas eleições de 1994 e 1998, mas principalmente depois da morte do deputado Luís Eduardo Magalhães (PFL-BA), quando ela passou a ser alternativa das correntes mais conservadoras à sucessão de Fernando Henrique Cardoso. Veio o caso Lunus - operação da PF que apreendeu mais de R$ 1 milhão em espécie em empresa da família durante a campanha eleitoral -, que alijou Roseana da disputa e jogou Sarney nos braços do PT (ele atribuiu a operação a uma conspiração do hoje governador José Serra, então candidato do PSDB ao Planalto).
ACM
Tal cenário gera efeitos semelhantes ao experimentado pelo ex-senador Antônio Carlos Magalhães - assim como Sarney, uma liderança nacional consolidada a partir de um império político regional. A longevidade da cultura política fisiológica de ambos transformou-os em líderes com doutrinas próprias que passaram a integrar o vocabulário político brasileiro: o “carlismo” e o “sarneysismo”. Ainda em vida, ACM assistiu à lenta deterioração do carlismo, como Sarney experimenta agora em relação ao sarneysismo. O grupo carlista sobrevive à morte de ACM na Bahia, mas não dá mais as cartas do jogo político nem está na linha de frente da disputa pelo poder. Assim como os “sarneysistas” se escoram apenas na figura do patriarca e na posição institucional que Sarney ocupa no Congresso. Olhando o panorama nacional, a tendência é de declínio.
Depois de enfrentar a campanha do “Xô Sarney” em uma eleição difícil contra Cristina Almeida no Amapá, o senador acabou mostrando que a visão apurada da velha águia política, que lhe rendeu cálculos políticos precisos e o levou à Presidência da República -, começa a dar sinais de alguma miopia. Forçado a disputar a sucessão do Senado, calculou que poderia ser guindado à presidência sem disputa. Errou.
Contou com o apoio de Lula para influir a seu favor, mas não aconteceu bem assim. Cometeu novo equívoco quando supôs que seria fácil derrotar Viana. Quis vestir o figurino confortável de candidato da instituição, com o apoio da oposição, mas não teve os votos do PSDB que contava como certos. Mal assumiu a cadeira de presidente, teve de afastar seu amigo e compadre Agaciel Maia da diretoria-geral, algo que julgou ser possível evitar se derrotasse Tião Viana. Por fim, não teve a dimensão do escândalo que abalaria o Senado e achou possível evitá-lo com a mesma fórmula de 14 anos atrás, de contratar uma consultoria da Fundação Getúlio Vargas.
As feridas da disputa com o PT já tinham evoluído da fase da sangria para uma hemorragia política que transformou a FGV em ator figurante. Alimentada por setores do funcionalismo do Senado que sonhavam em tomar o poder com Tião Viana, a oposição a Sarney trouxe denúncias que lhe atingiram diretamente: um auxílio-moradia pessoal indevido e um neto exonerado por ato secreto, depois de flagrado em nepotismo explícito. A estratégia de transferir ao primeiro-secretário, Heráclito Fortes, o ônus das explicações sobre as denúncias contra o Senado não funcionou mais. Sarney se viu obrigado, ele mesmo, a dar declarações em defesa própria.
Nesse ponto, o fator cronológico passa a ter importância. Sarney já fez as contas e sabe que não terá mais tempo para recuperar o desgaste de imagem e renascer forte aos 81 anos, quando termina o mandato à frente do Senado. O clima já não lhe será tão favorável como parecia profetizar ao recusar-se a ir para o jardim da residência oficial da Câmara na noite da última segunda-feira: “Está muito frio lá fora.”
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