quinta-feira, 20 de março de 2008

Conto abril - Século XX

Alcy Araújo

É abril. Esta, a grande e universal verdade. Abril – Século XX, explico. Relembrando Judas, o que traiu, e Pilatos, o que lavou as mãos, e Pedro, o que negou. Abril trazendo até nós a lembrança de que numa sexta-feira do Mundo, crucificaram o Homem Bom. O que acreditava na remissão dos homens. O que andou sobre a poeira escaldante dos caminhos e sobre a leveza das espumas, conduzindo de público o gesto de bondade. O que não traiu. O que não foi indiferente. O que não negou. Eu sou a Verdade, disse. Capaz de todos os sofrimentos e de amar sobre todas as coisas. Sabia que amar é um modo de sofrer.
Numa sexta-feira do Mundo, o Homem Bom subiu a colina fora da cidade. Com o Homem, o Cirineu, as mulheres, os centuriões, a turba. Do alto da cruz elevou-se ao seu reino. César era de outro mundo. Ficaram a turba, os centuriões, as mulheres, o corineu.
Vinte séculos depois e trinta e três anos de exemplos, envergonhado e triste, diante do templo, da imagem, círios lacrimais, o poeta não tem coragem de pronunciar o seu santo nome.
Bastaria isso. Estariam salvas as almas migratórias, desencontradas, exodoidais que habitam as latitudes do poeta.
Sabeis. Muitos séculos viveu o poeta. Do Gênesis a abril do corrente século. Mais precisamente. Do Caos ao hoje. Por isso os sentimentos. A traumatização da palavra sagrada, disse, há pouco. Melhor direi inibição. Melhor ainda. Descoberta de velhos sentimentos, na contemplação das almas do poeta.
Constarei a descoberta. O poeta contemplava nesta hora do século os olhos de suas almas multiplicadas, fixos nos céus, por onde passam anjos, estrelas, música de rádio, imagens de TV. E o poeta, cheio de experiências bem vividas – Caos, Paraíso, Dilúvio, Sodoma, Babilônia, Cartago, Roma, Wall Street, etc. etc – se comoveu.
Suas almas, almas de poeta, todas, ali, sem faltar nenhuma, na muda contemplação do azul, do infinito, dos horizontes do Pai. Emotivo e feliz, o poeta chorou. O poeta chora como os anjos.
Seus olhos, então, alçaram vôo, enquanto a mão emocional acariciava os cabelos cor de lago da alma recém-nascida.
Era chegado o momento. Tudo consumado. Ao longe, imóvel, pairava o disco voador.
Perdoai, Senhor, elas não sabem o que fazem. É abril – século XX.
(Extraído do livro Autogeografia, lançado em Macapá em junho de 1965)