Artigo dominical
Cara de ladrão
Dom Pedro José Conti, Bispo de Macapá
Um homem cortava árvores com um machado e vendia a lenha. Gostava muito da sua ferramenta. Um dia o seu machado preferido desapareceu. O homem procurou-o, mas foi inútil; não conseguia mais encontrá-lo. Convenceu-se que alguém o tinha roubado. Por causa disso, começou a espiar o filho do vizinho. Fazia muito tempo que não gostava do jeito dele. Agora que o observava bem, não tinha mais dúvidas: o andar dele era de ladrão, a cara e o olhar dele, também. Até os cabelos cumpridos eram de ladrão. Só podia ser ele quem tinha pegado o machado. Precisava desmascarar o criminoso. Após alguns dias, porém, varrendo a casa, a mulher encontrou o machado sumido. Estava debaixo do sofá, onde o próprio marido o tinha jogado voltando do trabalho. O homem ficou feliz e reparando novamente o filho do vizinho decidiu que, talvez, o andar dele não fosse de ladrão, nem a cara, nem o olhar e nem os cabelos. Contudo, melhor desconfiar, nunca se sabe.
Essa pequena história nos lembra como é fácil rotular as pessoas. O fazemos seguindo os nossos gostos, as nossas idéias e, na maioria das vezes, os nossos pré-conceitos. Depois é difícil desfazer os rótulos; quando o percebemos eles já estão bem colados nas pessoas e essas os carregam a vida inteira. É difícil aceitar e acolher os outros como eles são, sem querer julgá-los ou classificá-los, conforme os nossos esquemas mentais. Mais difícil ainda é nos alegrarmos com a melhoria deles.
Aconteceu também com Jesus, voltando para a sua cidade natal, Nazaré. O rótulo dele era aquele de ser o filho do carpinteiro, de ser pobre, do interior, do norte. Era verdade que agora ele revelava uma nova sabedoria, tinha gestos diferentes, e alguns diziam que fazia milagres. Contudo, para o povo de lá, continuava sendo o mesmo de alguns anos antes. Não queriam admitir que tivesse mudado.
Por que é tão difícil reconhecer que as pessoas podem mudar, inclusive para melhor? De onde nos vem tanta desconfiança? A resposta é simples.
Primeiro porque se admitirmos a mudança do outro, que agora se apresenta diferente de como o tínhamos rotulado, deveríamos reconhecer que erramos. Fica mais cômodo continuar a pensar que nós estamos certos e que só mudaram as aparências dele, a substância, porém, ainda é a mesma. Tudo disfarce. Porque nós nunca erramos.
A segunda razão é pior do que a primeira. Excluir que as pessoas possam mudar nos permite também continuar a sermos o que somos; na maioria das vezes acomodados em nossa mediocridade, ou em nossa ilusória superioridade. Reconhecer que seja possível mudar significaria admitir que nós também poderíamos ou deveríamos mudar. Isso nos incomoda e nos deixa inseguros. Muito melhor manter as nossas idéias, os nossos rótulos, porque isso nos faz sentir bem, na nossa segura e cômoda desculpa que sempre defendemos: mudar é impossível. Foi por causa da cabeça dura dos moradores de Nazaré, diz o Evangelho, que Jesus não pode fazer milagre algum naquele lugar e que somente curou alguns doentes.
Mais uma vez deveríamos entender que o verdadeiro milagre que o Senhor quer fazer conosco, se o deixarmos, é aquele de entrar em nossa vida como amigo e companheiro de luta e caminhada, sem mais nem menos, acolhido com alegria e confiança. Nós, porém, em várias formas, continuamos a rotulá-lo de “quebra galho”, de “curandeiro”, ou de “invasor de privacidade”. Naturalmente se acharmos que nos deu uma forcinha e resolveu o nosso problema, nesses casos valeu a ajuda. Mais amável ainda é quando não nos diz o que devemos fazer, querendo impor a sua moral. Se nos deixar a consciência em paz, é bom. Quantas vezes o chamamos de “salvador”, mas dos outros ou dizemos que é a “verdade”, contanto que esta coincida exatamente com as nossas idéias.
Um amigo verdadeiro não precisa de rótulos. Está conosco porque nos ama, nada mais. Nesse caso os piores cegos somos nós: os que não querem ver.
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